Carta Aberta ao meu vizinho
Morador em parte incerta
Meu caro,
Não sei por onde anda. Sei que há
muito tempo que não tenho notícias suas. Por cá, leem-se as Últimas dos que
comemoram dois anos de poder local e os que querem chegar ao poder, ora porque
ganharam eleições, ora porque as perderam. É confuso, mas é assim. Já percebeu,
caro amigo, que é grande a confusão. Todos gritam sem razão: os que a julgam,
os que a fazem, os que a perderam, os que acham que a têm - mas todos se
esqueceram que a principal razão que nasceu da vontade do povo que os elegeu, é
para que pessoas como o meu amigo tenham Liberdade de escolha. Ela tanto pode
acontecer no lugar onde nasceu como no país pelo qual percorreu milhares de
quilómetros e que lhe construiu um muro para facilitar o seu enterro às portas
da nova casa onde decidiu viver. Dantes, meu amigo, era tudo diferente: o mundo
era maior e sempre que nos lançávamos à estrada, a distância da esperança era
mais curta. Agora que temos tudo, e um mundo mais pequeno, a distância é cada
vez maior. Sei que o meu vizinho está com dificuldades em perceber tal barafunda,
mas acredite que também eu. Na terra do meu amigo não há água e eletricidade, a
comida não tem pacote e o supermercado concentra-se no prato. Por cá, há de
tudo: compra-se tecnologia como quem compra arroz e vende-se tecnologia como se
fosse essencial à vida. Está a ver meu amigo: é quase como a água que, sei, é
tão preciosa na casa que lhe resta como é aqui para regar o jardim… A mesma
água que o meu amigo vizinho não tem para beber! Mas sabe(?, aqui a vida
continua: bebe-se, come-se, rejeita-se, volta-se a comprar e até se deita fora
se quisermos fazer uma birra. Birra?!! Pois é, caro amigo, estava-me a esquecer
que não sabe o que é uma birra. Cá há muito disso! As nossas crianças e sobretudo
os políticos gostam dela - e alguns gostam tanto que se viciaram. Veja só como
são as coisas. Se o deixarem sair de casa, há-de ver que todos a fazem. Parece
um destino cá do povo. Enquanto uns discutem como gerir o poder, há fome, há
muita gente sem trabalho e outros andam a ver como sair daqui.
Meu caro vizinho,
Se lhe disserem que está tudo bem
por aqui - venha. É porque alguém ainda tem a esperança de que se pode fazer um
balanço. Mas faça-me um favor: não deixe que o enganem, não venda a palha que o
encobre da chuva nem o casaco que veste porque aqui faz frio. Traga as latas de
atum que lhe enviei por Messenger que duram mais tempo. Não pare para saber
mais notícias do seu país. Parece que as coisas estão a acalmar; há menos gente
para matar e o dinheiro para pagar a quem mata já sobra. Tenha cuidado com os
quilómetros de água que lhe faltam para chegar cá; há belos barcos à venda que
pode comprar. Se for abandonado no meio do caminho, não se preocupe: faz parte
da vida que encomendou. Eles parecem ser simpáticos e até são seus amigos-
afundam-no com muita eficácia e vão-se embora sem chatear quem seja capaz de
sobreviver como o vizinho… Por isso, caro amigo, está a ver que tudo se conjuga
para que um dia destes me dê notícias sobre a sua aventura. Se lhe disserem à
chegada que um dia há-de chegar a sua vez, não se preocupe: provavelmente têm
razão. Sabe?, é que tudo tem de ser escrito e tudo tem de parecer que, escrito
assim, é menos doloroso e o sofrimento não é tão grave para quem lê notícias
sobre o meu amigo. Espero poder agradecer-lhe por me ter contado a sua história
sem usar palavras nem sons: eu consigo imaginá-la, às vezes em escassos minutos
e - devo confessá-lo - às vezes demoro poucos segundos para me lembrar como
fomos bons vizinhos…
PS. Nesta estória não há heróis com rosto; nem dos que sobreviveram à longa Marcha da Migração, nem dos que são lembrados na intimidade dos familiares e amigos. A História se encarregará de falar deles e de como a Europa patrocinou uma das maiores barbáries em curso.
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